sábado, 25 de julho de 2009

PROVOCAÇÕES

O Teatro é uma Arte que compreende todas as outras formas de expressão artística. Essa afirmação, sem dúvida, não traz nenhuma novidade. A semiologia teatral já se debruçou sobre o assunto. Para Bogatyrev, a produção teatral distingue-se das outras produções de arte e de outros sistemas pela grande quantidade de signos que veicula. Uma representação teatral é uma estrutura composta de camadas, ou elementos que pertencem a artes diferentes: poesia, artes plásticas, música, coreografia, etc. Não obstante, não queremos retomar aqui a idéia wagneriana de “obra de arte total”, segundo a qual a Arte Teatral não existe como Arte autônoma, mas surge como uma combinação das diversas artes, ou como uma “síntese suprema”* de todas artes.

Diante deste conceito básico da Arte Teatral, já há alguns anos venho me questionando: Por que o Teatro está tão estagnado, enquanto as outras expressões artísticas estão passos a frente? Por que está isolado das outras Artes? É só freqüentarmos galerias e mostras de Arte Contemporânea para observarmos as artes plástica e visual, dança e música propondo um diálogo com o mundo pós-moderno e seus desdobramentos tecnológicos, políticos, sociais, etc. “Será que a única alternativa para a caretice é Brecht?” E. Gordon Craig, no início do século passado, declarou guerra ao ator, era necessário que o teatro evoluísse do atual estágio de imitação e personalização para aquele da expressão simbólica e, finalmente, usar instrumentos feitos pela mão do homem para criar um mundo real da arte para então revelar e não descrever. Craig cita a famosa frase de Eleonora Duse – “para salvar o teatro, o teatro tem que ser destruído, todos os atores e atrizes devem morrer de praga. Eles empesteiam o ar, fazem o ar inrrespirável”. Por que Antoin Artaud nos fala do “corpo sem órgãos”? Será que estamos tão cheios de “tranqueiras” que não sobram espaços para os órgãos, por isso apreciamos e fazemos um teatro hermético, pouco vivo, não orgânico?

Atormentada por essas perguntas sem respostas resolvi me distanciar um pouco da cena e comecei a frequentar um grupo de discussão acerca do fazer artístico. Esse grupo era composto por vários artistas, arquitetos e filósofos. Desse grupo surgiu o Coletivo Ambulante. Um coletivo de artistas de diversas áreas que compartilham das mesmas questões, a primeira delas é NÃO ter um ponto fixo, uma sede que nos possibilite o conforto e a segurança das quatro paredes. Pelo contrário, nos permiti aprender a dialogar com cada espaço e nos coloca ao acaso do itinerário, do risco e do imprevisto, por isso AMBULANTE. Por que coletivo e não grupo? Era a segunda questão. Grupo se encerra em si mesmo, se fecha no compromisso estabelecido entre seus componentes, que são artistas autônomos, que por ora querem compartilhar questões. O coletivo é mais diverso: diverso no sentido de se abrir a pensamentos diferentes, dissonantes ou não e, com isso, criar um diálogo, por vezes mais rico. Nesse sentido, o coletivo atende a demanda do mundo contemporâneo. A terceira e fundamental questão é a rua e seus desdobramentos, a rua como lugar concreto e imaginário para realizarmos nossas experiências cênicas e levantarmos várias outras questões: Como dialogar de fato com a rua e sua arquitetura hoje, aqui e agora? Há diferença em Teatro DE Rua e Teatro NA Rua? Isso importa? Por que queremos fazer ainda um teatro medieval? Como lidar com as interferências da rua de uma grande cidade? A rua é uma escolha estética ou uma posição política? Com experiência no Teatro de Rua queria ir além do que é feito hoje no Brasil. Mas como? O novo existe?

A única coisa que sabemos (talvez) é que as respostas se constituem no caminho, no entre e não no fim. Queremos descobrir e constituir a terceira margem do rio. Ainda não sabemos como, pois estamos no meio da correnteza. “Roseanamente” falando, a partir do nonada, queremos travessia.

A intervenção cênica Era uma vez uma noiva... surge a partir dessas e várias outras questões colocadas e experimentadas nos encontros semanais do Coletivo. As discussões teóricas permearam todos os encontros, era o nosso “fogo”, “alimento”. Como a questão do espaço tornava-se às vezes um “problema”, a realização da prática era prejudicada. Construímos um corpo imaterial, que aos poucos ia impregnando a matéria corpórea. O corpo material e imaterial ia se (re)organizando a medida que nos aprofundávamos nas discussões. Antoin Artaud, Gaston Bachelard, M. Bahktin, Pina Bausch, Tadeusz Kantor, Umberto Eco, Edgar Ende e suas pinturas surrealistas, Rubens Britto e seu Teatro Quântico, Christine Greiner, Ana Maria Amaral, Joseph Campbell, Carl Jung e, principalmente, Michael Ende e sua literatura surrealista serviram de base para construção no nosso pré-texto material e imaterial.

A partir do arquétipo da noiva e de algumas palavras-chave: travessia, tempo, desequilíbrio, degradação, decomposição, duplo, sombra, ciclo e TAO, construímos um roteiro/percurso que a noiva e suas “sombras” iriam seguir até a montagem de uma escultura de três metros em frente à igreja. As duas estruturas aramadas que compunha a saia da noiva/escultura foram decisivas para a constituição da cena, pois sua manipulação pelas “sombras” arrematou vários conceitos trabalhados, assim como o véu de quinze metros usado pela noiva. A manipulação de objetos e o figurino são pontos fundamentais da nossa pesquisa enquanto artista. A criação da cena se dá concomitantemente com a manipulação e relação que se dá ator-objeto/figurino.

Dia 17 de maio de 2009, na Câmara de Cultura Antônio Assumpção, em São Bernardo do Campo, nas badaladas do meio-dia começava a apresentação Era uma vez uma noiva... Três atrizes-pesquisadoras em cortejo performático pela Rua Marechal Deodoro, principal rua comercial da cidade, em direção à igreja Santa Filomena, um dos poucos prédios antigos que ainda restam na cidade. A primeira, uma atriz negra, arrastava um extenso véu branco e um pequeno bouquet de flores brancas: a NOIVA. As outras duas, atrizes brancas vestidas de negro, cada uma carregando e manipulando uma estrutura de arame com 2X2: as SOMBRAS. Movimentos que variavam do rápido para o lento, contrastavam com o ritmo da cidade. Mesmo assim, alguns acreditavam que estavam assistindo a cenas reais de uma mulher abandonada na porta da igreja, por isso estava louca, outros juravam que sempre a encontravam por ali jogada na calçada suja pedindo esmolas, mas que susto quando se deparavam com as estruturas metálicas manipuladas por mulheres de negro, seres fantasmagóricos, em plena luz do dia. O óbvio tornava-se evidente: era teatro. Outros apenas viravam o rosto para não se enxergarem dentro da cena, mas não adiantava, compunham a cena, faziam/fazem parte dessa cidade-labirinto em decomposição. A rua tornou-se o grande palco dessa “tragédia” que compõe o imaginário de todos os povos, o da mulher abandonada. A travessia era longa, tínhamos feito apenas 1/3 do caminho e a noiva foi parada por uma evangélica que tentou incessantemente arrancar o demônio de dentro da noiva, mas foi em vão, o demônio está dentro de todos e é preciso conviver com ele. Foram algumas quedas até a noiva chegar ao seu destino, a igreja. Nos últimos metros foi carregada pela sombra. Diante da noiva de três metros a pequena noiva degradada entrou pelos buracos da saia e lá foi encerrada pelas várias camadas de tule e papel crepon, chegara ao final de sua degradação, agora iniciaria a da grande noiva.

O tempo iria cumprir sua função de degradador, durante 30 dias a escultura sofreria a ação do tempo. Arrastamos uma comitiva de espectadores, curiosos e críticos, alguns foram até o final, outros apenas apreciavam um “pedaço” da cena, mas cada um levou a sua impressão e não o entendimento, não havia nada ali para ser entendido, não racionalmente, outros sentidos foram acionados. A obra de arte é aberta. É tão aberta que está para sofrer a intervenção do homem. Após sete dias, a noiva amanhece caída, incinerada, destruída. Tal ação comoveu todos os freqüentadores da pequena praça onde localiza-se a igrejinha. Ao tentar saber o que havia acontecido, o vendedor de artigos religiosos, não sei se inspirado pelo fato, ou constitui o panteão dos homens-sábios populares, disse apenas “Dona, pior que a ação do tempo é a ação do homem”. Atônita à resposta inesperada, apenas consenti, dei meia volta e fui embora com essa frase que me calou. Joguei essa “bomba” para o coletivo.

Até hoje essa frase pesa na nossa alma, no nosso espírito. No momento tem ocupado bastante espaço dentro do nosso corpo, talvez seja uma das maiores “tranqueiras” que ocupam nosso corpo, deixando quase nenhum espaço para nossos órgãos. É essa nossa “bomba” que precisa ser dançada. Após essa experiência que durou três horas, mas reverberou por muitos dias, descobrimos um caminho, talvez o caminho que se encontra a frente da porta do conto de J. Kafka, talvez. E é nesse caminho que queremos seguir. Não sabemos o que fazemos, uns chamam performace, outros intervenção urbana, alguns poucos teatro, outros poucos dança. Os responsáveis pela cultura na cidade denominaram instalação cênica. Enfim, o que importa? Importa é termos constituído a tríade atuante-texto-espectador.

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