sexta-feira, 10 de julho de 2009

É UM QUARTO E AO MESMO TEMPO UM DESERTO


As paredes nuas erguem-se distantes e vaporosas no horizonte. Por toda a volta nada além de areia, duna após duna, infinitamente em todas as direções. Bem acima, no zênite, está suspenso um sol abrasador, ou será uma lâmpada com um quebra-luz de lata esmaltado em azul? A luminosidade mata todas as cores, só deixando manchas brancas e sombras negras: o esqueleto da luz, deslumbrante, insuportável, homicida, o brilho mau de um esquisito aparelho de transpiração.

O quarto tem duas portas que penetram gigantescas no calor azul do céu, uma ao Norte e a outra ao Sul, sobre o horizonte bruxuleante.

Da porta do Norte parte uma múltipla pista sinuosa de pequenos funis de areia para o meio do deserto. Ali, move-se para frente um homem pequeno como uma formiga. A cada passo ele afunda até os tornozelos, cambaleia e bate os braços.

É o noivo.

Seu rosto está queimado pelo sol, a pele rachada e cheia de bolhas. Os lábios, brancos pela saliva ressecada. O cabelo descolorido, desbotado, está desgrenhado e espetado na cabeça como palha. Seus óculos – sempre escorregando sobre o nariz úmido de suor –, ele volta a empurrar para cima com paciência abafada. Na mão esquerda, ele balança uma velha cartola amassada. O fraque nupcial que está vestindo pode lhe ter servido em tempos passados, mas agora é grande demais para ele, as abas vão até seus calcanhares. O tecido estragou-se e está puído em vários lugares. A camisa saiu para fora da calça, pois esta também está grande nele e, a cada três passos, ele tem de puxá-la para cima. Um pé está metido num sapato de verniz, cuja sola está se desfazendo, e o outro, enrolado em um lenço de bolso sujo para protegê-lo, pelo menos um pouco, do calor da areia.

Uns vinte metros na frente desse homem, marcha um outro, talvez um funcionário público: traje extremamente carreto, terno escuro, chapéu escuro, uma pasta na mão, na outra um guarda-chuva bem enrolado. Seu rosto é um pouco pálido e não apresenta qualquer traço característico. É como se houvesse sido apagado.

A distância entre os dois caminhantes aumenta pouco a pouco, mas de modo constante. O noivo se mexe, puxa a respiração ofegando, cai, torna a se levantar, segue cambaleando, volta a cair.

– Ouça, por favor! – grita ele e sua voz soa alta e extenuada como a de uma velha. – Espere aí! Quero lhe perguntar uma coisa.

O homem sem rosto escuta o chamado, mas ainda segue um bom pedaço antes de parar e se virar suspirando, como se se tratasse do choro de uma criança malcriada que o tenta parar pela centésima vez sob qualquer pretexto. Apoiado de leve em seu guarda-chuva, ele fica observando como o noivo arrasta-se penosamente pelas dunas em sua direção.

– Por favor, apresse-se! – diz ele frio. – Afinal de contas, o que é que você quer de novo?

– Diga-me – diz ofegando o noivo e, pelo visto, pára para refletir sobre o que queria perguntar –, diga-me, por favor, ainda está muito longe?

Enquanto falava, seus lábios inchados soltam fios de baba.

– Só mais alguns passos – replica o outro de modo tão correto quanto antes –, só até aquela porta ali.

E ao dizê-lo, apontou com o guarda-chuva para a porta do sul.

Ele quer virar-se de novo para caminhar, mas o noivo o segura firme.

– Desculpe-me – profere ele com um certo esforço – para onde... sabe, no momento eu me esqueci... para onde mesmo é que estamos querendo ir?

– Até sua noiva, meu senhor – explica o outro e pode-se ver que ele já teve de dar essa resposta várias vezes. Ele acentua cada sílaba e fala alto como quem se dirige a um surdo ou imbecil. – Eu o estou levando para o quarto de sua noiva.

O noivo olha fixamente para ele, durante algum tempo, de boca aberta, depois dá um tapa na testa e ri apressado, pedindo desculpas. Ele tenta um sorriso enquanto diz:

– Quando nós chegarmos a ela, então estará tudo bem, não é verdade? Ela não vai reparar só porque não estou mais tão bem vestido, não? Ela vai compreender que é tudo por causa dela? O que padeci vai convencê-la de meu amor por ela? Ela vai acreditar em mim, estou certo disso. Vai me receber de braços abertos.

– Se chegarmos até ela – constata o outro de modo objetivo.

– Certo, certo – murmura o noivo –, vai ser daqui a pouco, daqui a pouquinho. Afinal, foi por isso que escolhi o caminho direto, apenas daquela porta lá atrás, até essa ali na frente. O caminho direto é o mais curto, não é verdade? Qualquer criança sabe disso.

– Não – diz o outro sem nenhuma expressão –, não na sala do meio-dia. Eu lhe disse desde o princípio, mas você não quis acreditar. Qualquer volta teria sido mais curta. Você não me deu ouvidos. E agora é muito tarde. Já fomos longe demais.

O noivo lambeu os lábios rachados com a língua toda ressecada.

– Então posso fazer com ela o que quiser – sussurra ele. – Ela deve aceitar tudo sem se opor. Afinal de contas, ela é minha noiva. Mas não lhe farei isso. Não vou fazer nenhum mal a ela, você compreende o que estou dizendo? Aliás, ela é muito bonita e jovem. Completamente inocente, sabe? De qualquer modo, serei carinhoso com ela, terno e com tato. O fato de eu ter escolhido o caminho direto, não significa que eu queira tomá-la de surpresa. Vou dar-lhe tempo.

O acompanhante cala-se e olha desinteressado para o horizonte.

O noivo olha durante um longo tempo para o dedão do pé que sobressai do sapato de verniz, e depois pergunta, repentinamente, desconfiado:

– É verdade que ela.é bonita e jovem... minha noiva? Eu queria dizer... ela continua sendo, não é verdade? Por favor, dê sua opinião da maneira mais aberta e sincera!

– Não tenho nenhuma opinião sobre isso – replicou o homem sem rosto.

O noivo esfrega a testa.

– Sim, sim, eu sei. Só que .. tudo isso foi há tanto tempo. Eu quase não me lembro do rosto dela. Olha, falando honestamente, já não conheço mais essa pessoa. Alguma moça estranha. Como é mesmo que ela se chama? Meu Deus, já estamos andando há um bocado de tempo.

– Nós viemos daquela porta – diz a voz fria – e estamos indo para essa ali. Isto é tudo.

– Não compreendo – confessa o noivo –, eu simplesmente não compreendo que seja tão longe.

– Você não compreende – repete o outro virando-se para andar –, mas sua noiva espera. Venha!

O noivo tornou a segurá-lo pela manga.

– Afinal de contas, como é que você sabe disso? Talvez ela já não esteja mais esperando. Ou nunca esperou. Podem ter acontecido certas circunstâncias. Nesse caso, eu teria feito tudo à toa. Eu teria sido ridículo.

– Isto – respondeu a voz seca – você vai ficar sabendo melhor se entrar por aquela porta lá na frente.

– Aquela porta lá da frente – sussurra o noivo – ela é inalcançável, está sempre à nossa frente, sempre à mesma distância... Trata-se de uma miragem e não de uma porta.

– Besteira! – diz o outro sem sorrir. – Uma miragem surge e desaparece. Mas essa porta estava ali desde o início e continuou no mesmo lugar, sem mudar em nada.

O noivo balança a cabeça.

– Sim, sem mudar em nada... desde outrora, quando comecei a caminhar... quando eu ainda era jovem.

– Portanto, não é miragem nenhuma – replica o acompanhante num tom conclusivo, pondo-se em movimento logo em seguida.

Durante um longo tempo os dois homens caminham lado a lado, mas pouco a pouco vai surgindo de novo a distância entre eles, que aumenta. Mais uma vez o noivo grita e, novamente, o homem trajado de maneira correta só pára depois de algum tempo, e espera por ele apoiado no guarda-chuva. O noivo desagrega-se a olhos vistos. Sua roupa pende-lhe no corpo em farrapos. Ele também parece ter se tornado menor e mais velho.

– Antigamente – ele avança ofegante e, com a cartola da qual só resta a aba, faz um movimento distraído em direção à porta Norte –, antigamente eu ainda era forte, você se lembra? Antigamente era eu quem corria na frente, e não você, está lembrado?

– Às vezes, – corrige o outro – muito raramente.

O noivo balança teimosamente a cabeça.

– Não, não. Você quase não podia me seguir. Fazia força para acompanhar meu passo. Antigamente eu era mais jovem do que você, meu caro. Muito mais jovem e forte. Eu era um jovem imponente.

– Eu – replica o acompanhante – continuo tendo a mesma idade.

O noivo limpa com a mão a areia do rosto enrugado.

– Eu me lembro – sussurra ele – que quando saímos pela porta, uma mulher velhíssima estava agachada no chão, diminuta, como que encolhida pelo sol. A única coisa que ela trazia no corpo eram alguns farrapos de teia-de-aranha. Talvez fossem os restos de seu véu de noiva. Pobre velha descuidada! Senti nojo de seus seios caídos, tão magros e vazios como dobras de pele. Mas o olhar que ela me lançou... muitas vezes fui obrigado a pensar nele. Ela tinha olhos afundados, meio cegos. E ela estendeu a mão para mim, mãos que seguravam algumas rosas ressecadas. Aquele olhar me lembrou algo... ou alguém. Agora eu esqueci. Só sei que senti vergonha por ela, por ser ela tão velha e feia. Tirei o cravo que trazia na lapela e atirei para ela. Ela agarrou e riu toda desalentada. Acho que ficou contente com meu presente. Sim, antigamente eu era mesmo um jovem imponente e forte como um touro. Eu achava que só precisava dar uns passos e estaria diante dela, da minha noiva. Estava com pressa. Foi por isso que quis o caminho direto até ela.

– Venha! Venha! – disse o acompanhante que nesse momento já está um pouco impaciente.

Mas o noivo ainda tem algo a dizer, embora precise fazer força para falar de maneira compreensível.

– Você também não acha – grasna ele – que seria mais inteligente se esperássemos anoitecer? No frescor da noite podemos caminhar mais facilmente.

– Por favor – responde o homem sem rosto –, contenha-se! Você está confundindo tudo. Nós nos encontramos no quarto do meio-dia. Noites existem em outra parte. Veja com seus próprios olhos, aqui nós não fazemos nenhuma sombra. A luz encontra-se no zênite, inalterada e inalterável.

O noivo balança a cabeça tristemente, deixa os braços caírem e diz:

– Não posso mais.

O acompanhante remexe indiferente a areia com o guarda-chuva.

– Você já disse isso cem vezes. Será que terei de apelar para seu senso de responsabilidade mais uma vez? Estão esperando por você. Sua noiva conta cada minuto. Está com saudades de você, do jeito que só as jovens conseguem sentir saudades. Quer dizer então que isso não significa nada para você?

– Claro, claro! – o noivo apressa-se a asseverar.

Novamente os dois caminham calados durante um longo trecho do caminho, horas ou anos à luz escaldante.

De repente, o noivo joga-se ao chão, vira-se de costas e grita para o céu:

– Por quê? Por que mesmo? Por que o caminho é tão longo? Eu nunca chegarei. Nunca, jamais verei ou abraçarei minha noiva. Por que eu simplesmente não posso dizer a ela que a desejo, que a quero ter, que anseio sentir sua pele, seu corpo? – ele é sacudido por um acesso de tosse e não consegue prosseguir falando.

O acompanhante espera indiferente até que ele acabe e, depois, diz:

– Você já fez isso tudo. Já disse essas coisas e elas estão, palavra por palavra, nos documentos – ele bate de leve com o guarda-chuva na pasta de couro.

O noivo mexe os lábios durante algum tempo sem nada falar.

– Mas por que – balbucia ele no fim –, por que estou aqui e não junto com ela? Por que é que estou sempre indo até ela, sem nunca chegar lá? Por quê? Por quê?

– Porque foi você quem quis assim – diz o outro baixando o olhar na direção dele. – Foi-lhe dito repetidas vezes que o caminho direto era o mais longo. Você não deu ouvidos. Será que dá para você me escutar agora?

– Sim – grunhe o noivo. Ele olha fixamente o acompanhante durante um longo tempo, depois começa a rir. Isso soa como uma algaravia. O outro espera imóvel. Finalmente, o noivo engole em seco e sussurra: – Quer dizer que a matemática simplesmente me enganou?

– Não – diz c acompanhante –, nela está correto.

O noivo deixa a cabeça cair na areia e olha para o sol. Seus olhos doem como se estivessem sendo penetrados por ferro em brasa, mas não lhe sai nenhuma lágrima. Já não as tem. Ele deixa a areia correr por entre seus dedos e murmura:

– Quer dizer que é assim! Eu desisto. Estou em greve. Não quero mais. Estou em greve.

– Vamos, coragem! – diz o acompanhante, mas a frase é dita sem qualquer participação emocional. – A porta já está ali. São apenas alguns passos mais.

O noivo volta a deixar a areia correr por entre os dedos. O acompanhante puxa-o para cima e o segura de braços esticados, de tão leve que ele se encontra. Suas pernas bamboleiam no ar como as de uma boneca.

– Não vejo mais nada – sussurra ele. – Não tenho mais olhos.

– E a sua noiva? – pergunta o outro.

– Não sei de mais nada. Não entendo mais nada. Não quero mais nada. Não tenho noiva nenhuma. Nunca tive uma noiva. Nunca desejei. Nunca amei. Nunca existi. Por favor, me deixe em paz.

Mas o acompanhante não desiste.

– O senhor não tem direito de abdicar de sua existência. Só pensa em si mesmo. Mas assumiu uma responsabilidade. Como homem de caráter, não pode simplesmente colocá-la de lado.

– Caráter... – sussurra o noivo, ainda com as pernas bamboleando no ar – eu me pergunto por que você não assume minha tarefa. A moça vai ficar contente. Você continua jovem... de qualquer maneira, mais jovem do que eu.

O acompanhante o solta. Ele cai na areia como uma trouxa de farrapos. Com os olhos apertados ele tenta enxergar o homem sem rosto parado de pé a sua frente.

– Nossas obrigações – ele ouve a voz calma dizer – não são as mesmas.

O noivo volta a brincar com a areia.

– Obrigações ..

Obrigações... – sussurra ele e dá uma gargalhada. - Nesse momento, o outro fica irritado pela primeira vez, – Você se melindra como se se tratasse de sua vida.

– E é isso mesmo – respondeu o outro balançando a cabeça com ar triste –, trata-se da minha vida, retroativamente, você entende? Eu sou um velho, mas não tive nenhuma vida. Anularam tudo em mim. Alguém roubou a minha vida e eu não sei quem foi. E agora não quero mais nenhuma. Não quero nunca ter tido uma. Você não pode fazer nada contra isso.

– Claro que posso – diz o outro –, vou carregá-lo nos últimos passos.

O noivo dá uma gargalhada.

– Nos últimos passos... você não vai conseguir.

– Permita-me! – diz o outro e, sem esperar pela resposta, ele ergue o noivo e coloca-o no colo. Este pousa um bracinho magro em volta dos ombros do acompanhante e aninha a insegura cabecinha de ancião no pescoço dele. E assim eles vencem de novo um longo trecho do caminho. Embora o noivo quase não pese, depois de algum tempo o braço de seu carregador ficou dormente e este deixou-o deslizar para o chão.

– Os últimos passos... – zomba o noivo triunfante – veja, veja!

O homem sem rosto não responde. Ele engancha o gancho de seu guarda-chuva na gola do fraque, ou melhor, nos restos que ainda existem, e sai arrastando o noivo pela areia.

Novamente passa-se um longo tempo.

O noivo sente que o outro o largara e tenta liberar-se da trouxa de farrapos.

– Chegamos – ele ouve a voz indiferente dizer. – Eu lhe disse que eram apenas mais alguns passos.

Juntando as últimas forças, o noivo põe-se sentado e abre os olhos. A luz penetra nele qual metal fervendo e ele solta um grito que nem chega a perceber.

A porta oscila diante de seus olhos caducos. Está aberta. A vista é de um matiz um pouco mais escuro do que o vaporoso azul do céu que o cerca. Neste setor encontra-se uma moça crescida, de pernas longas, nada mais vestindo que um vaporoso véu de noiva, que cai de sua cabeça e envolve-lhe o corpo, transparente como a névoa delicada. Seu rosto está quase escondido nessa névoa, mas são bem visíveis seus membros longos e delgados, suas coxas, seus pequenos seios, seu ventre liso e o rosa de seu colo. Ela tem um buquê de rosas na mão.

– Até que enfim! – grita ela. – Quase morri de saudades. Onde está ele? Onde está ele?

O acompanhante vira-se para o noivo, o qual, com muito esforço, ergue a mão e pousa um dedinho definhado na boca banguela e caída, num gesto de súplica.

O acompanhante encolhe o ombro imperceptivelmente e volta-se para a noiva.

– Seu noivo a está esperando atrás da porta norte. Se você quiser, posso levá-la no caminho direto até ele.

– Vamos! – diz ela. – Vamos rápido. São só alguns passos e então eu estarei ao lado dele.

Ela quer sair correndo, mas detém-se porque o noivo estende-lhe a mão. Perplexa, ela o contempla durante um instante, depois atira-lhe uma das rosas do buquê.

O noivo levanta a vista para o acompanhante que observara aquilo de braços cruzados e diz em voz baixa:

– Bem, pelo menos vocês se encontraram. Vocês já fizeram isso tantas vezes e voltaram a fazer. Nem todos podem dizer isso de si.

Em seguida, ele seguiu a moça, que corria pelo deserto dando longos saltos em direção à outra porta. que aparecia gigantesca no horizonte norte. As duas figuras foram ficando cada vez menores entre as dunas e, no final, restou apenas um rasto de minúsculos funis de areia.

O noivo seguiu-os com olhos brancos, enquanto seus dedos tocavam o botão de rosa.

– Como ela é linda! – sussurra ele. – Meu Deus, como ela é linda!

E enquanto ele torna a afundar na areia, seus lábios murmuram:

– Será que ela ainda vai me encontrar, lá do outro lado, atrás da outra porta?

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