domingo, 23 de agosto de 2009

Desenho de cena (atualisado)



Era uma grande cidade cinzenta ao pino do meio dia, com seus arranha-céus enegrecidos pelo tempo, seus carros barulhentos, suas ruas retas entrecortavam as largas avenidas.
Um labirinto.
Ou seria o interior da alma de uma mulher desgastada?
Ao longe, em meio à multidão de pessoas, cimentos, cacos e entulhos via-se três figuras.
A primeira era uma velha, quase uma tartaruga, seu rosto dobrado pelo tempo, sua corcunda arriada com o peso de uma enorme trouxa, suas velhas mãos calejadas apoiavam um torto cajado, seus pés que arrastavam bugigangas tropeçavam no nada.
A segunda era uma noiva, quase uma gazela, suas longas pernas tentavam deslizar por entre a multidão, sua rubra boca entreabria-se num ligeiro sorriso a procura... Seus negros olhos tateavam ... O alvo véu escorria-lhe ...
A terceira era a outra, quase sem rosto, seus braços disformes pendiam ao longo do corpo, seus imundos pés marchavam atrás da noiva: a sombra.
O balbuciar dos resmungos incompreensíveis da velha chamavam a atenção dos transeuntes do largo. O resto de um guarda chuva seguia-lhe incessantemente. O som de um acordeom chamou-lhe atenção.
Parou.
Ajoelhou-se.
Desceu a enorme trouxa da corcunda e com extremo cuidado tirou um desobjeto. Talvez um pente de madeira com dois ou três dentes quebrados que agora servia de casa para uma família de cupins.
A noiva tentava correr mas estava enlaçada à sombra, seus calcanhares subiam, suas escápulas produziam movimentos repetitivos, seu pescoço projetava-se à frente, mas era impossível sair do lugar.
A sombra agachou em oposição à noiva e apontou para a porta da igreja, que estava no final da enorme passarela.
As badaladas do sino da igreja ressoam retinido pelas ruas retas esvaindo-se em uma densa nuvem de poeira cinza-chumbo.
A velha deixou cair aquilo que outrora fora um pente, seus olhos caídos pareciam não mais estar ali, estavam perdidos em algum lugar de suas lembranças rotas e remotas. Logo que o sino parou de tocar juntou sua trouxa e a colocou novamente nas costas. O caminho era curto, mas sabia que seria longo.
A noiva desenlaçou-se da sombra, em passos trôpegos avançou em direção à igreja. O sol queimava-lhe a face, mas tinha que continuar, “faltam apenas alguns passos”, pensou. A sombra desidéria e etérea seguia no seu ritmo. “Corra”, disse ela com a voz que só uma virgem tem. Mas os pés doíam-lhe, afinal já estava andando algumas horas sem descanso. “Não quero chegar descabelada”, disse com a voz travada de sede.
Quanto mais andava mais longe a torre da igreja estava. “Será que ele está me esperando? Que bobagem, é claro que está, sempre estará. O sino tocou, já são seis horas?” “Não, são meio-dia” Disse a sombra secamente em marcha lenta. “O sol está a zênite, sempre”.
O sol era abrasador, seu lábio rachara, o da velha. Sabia que o noivo não estaria lá, já fizera essa travessia diversas vezes e ela nunca o encontrara. Um dia fora feliz, era leve e podia alçar vôo . Agora pesava, pesava muito sua corcunda, seus desobjetos desgastados moribundos.
As pernas de gazela da noiva arquearam, começavam a pesar. Seu sapato de verniz branco soltara a sola do pé direito, o do pé esquerdo tinha ficado para trás. Já não deslizava como antes. A distância entre a noiva e a sombra diminuía. Em sua firme marcha lenta rasgara um olhar para a velha que estancara para olhar a noiva, já não mais tão altiva, os ombros pesavam. Diminuira visivilmente alguns centímetros. Algumas mechas do cabelo soltaram-se do véu, agora cobriam-lhe o rosto suado e com algumas linhas que mostravam que os anos haviam passado.
O longo corredor de concreto nunca lhe pareceu tão estreito. As paredes pichadas estavam mais perto. O cheiro virulento da miséria era mais intenso. Somente agora percebeu que a igreja estava mais distante da última lembrança. “Não pode ser, a igreja parecia tão perto, só alguns passos e eu estaria lá nos braços do meu amado para a felicidade eterna, até que a morte nos separe”. “Nem sempre o caminho mais reto é o mais rápido” Disse a sombra agora ao lado da noiva, que cambaleava tonta com a distante visão da torre da igreja.
O ar faltava-lhe. As mãos murchas procuravam debilmente algo nos bolsos de sua saia esfarrapada. Esboçou um sorriso no rosto flácido, tinha encontrado seu balão de oxigênio, "Que bom sentir o ar preencher meus velhos e frágeis pulmões". Novamente desceu sua enorme trouxa, abriu-a e guardou seu balão de oxigênio, ou o que restava dele. De repente parou. Com os olhos pregados no chão via uma carreira de bitucas de cigarro. Pôs-se a recolher, todas elas, incessantemente, num ritmo frenético, eram muitas bitucas, filtro branco, amarelo, tinham tamanhos variados, pequenas, grandes, médias, tocos, todas ali para serem recolhidas, consumidas. Não percebera, mas havia andado bastante, estava agora próxima a noiva, a alguns metros. Avistou um banco, sentou, escolheu a mais sugestiva bituca, ascendeu e tragou... A sua esquerda estava um fio do mais rico tecido.
Ofegante e trôpega nem percebera que seu vestido estava desfiando. Havia um rastro imaculado de metros e metros. Foi quando caiu pela primeira vez. Suas pernas enrugaram com o peso do longo véu. “Não vou conseguir.” Disse a noiva sussurrando. A sombra que já estava a sua frente parou. Olhou pra trás e disse secamente: “Nós precisamos prosseguir, é nossa obrigação chegar lá.” “A sua, não a minha, quero ficar aqui, sentir o sol queimar toda a minha carne, ossos, alma. Quero sentir a poeira negra do asfalto me comer por dentro, quero virar cimento.” Vendo que a noiva não se movia, a sombra voltou, levantou-a e conduziu-a até a esquina.
Perdida nos pensamentos daquela deliciosa tragada não percebera a queda da noiva, nem o olhar reto e certeiro que a sombra lhe lançara.
Perto dali, em cima de um viaduto estava rijo um jovem homem pássaro com uma rede enlaçada a seus pés, tentava levantar vôo, mas a rede a seus pés o atrapalhava. Na esquina, estava sentado um aleijão, o marido da rainha das putas, que estava na outra esquina. Mulher sem rosto, com seu corpo coberto por aparelhos eletrônicos, entre suas pernas havia uma tv que chiava, seu corpo exalava um cheiro metálico. O cheiro se misturava a dos outros moradores da cidade-labirinto, que cochichavam cada vez mais alto, seus cochichos se misturavam aos barulhos dos carros nas ruas, avenidas. Acima deles todos estava o céu, azul-dourado embebido de negro, onde o sol e a lua se fundiam num ato desesperado, inacabado...

3 comentários:

  1. Oi Ma!!!!
    Que texto hein!!!
    muito bom!!!

    bjos da Cris Abreu

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  2. Mariana..mamããããeee!!!
    Tõ bege, tô passada!!! Muito bom mesmo...
    A velha, a mãe, a donzela...as três faces da lua!!!
    Lindo mesmo! Parabéns...

    Manu.

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