segunda-feira, 22 de março de 2010

O Vazio...por Clarice Lispector


“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.


2 comentários:

  1. Realmente é uma lucidez vazia, preenchida de tudo!!!

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  2. PÉNELOPE

    Minha irmã foi noiva longamente
    que hoje borda e fia na janela,
    penélope de prórpio labirinto.
    Eu mesmo na janela não diviso
    senão a vaga espera, em gesto aéreo,
    tecida apenas do desejo aflito
    com que bordo seu noivo nos atrasos.
    Não cabem nossos olhos nesta sala
    tão grande, de paredes recuadas;
    pois que se cruzem, se amem, se maltratem
    com entender de si seus tempos vários.

    Apanho teu novelo descuidado,
    componho-o de novo, ao revés;
    alcança-o teu colo, no bordado
    de onde partiu e chega, já sem cor.
    Teu noivo, nessa espera, longamente
    não vem; o que te posso responder
    (como profeta que olha à ré do corpo)
    é que já não virá, em seu destino
    entregue à solidão dos esperados.
    E nós, nosso retrato se colore
    daquele azul das horas cumuladas
    com que á distância vemos, no bordado,
    fio e agulha em linho descansando.
    Teu corpo no caminho da janela
    eternamente indo, e eu ficando.

    A.Villaça

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