sexta-feira, 16 de abril de 2010

Debates - primeiro encontro tem marca da contemporaneidade

Quinta-feira à noite, foi realizado na sala de exposição de grandes obras da Pinacoteca de São Bernardo do Campo o primeiro de uma série de encontros sobre arte contemporânea e sociedade, o Debates: uma das atividades do projeto Paisagens Urbanas... um Labirinto, realização do Coletivo Ambulante.

O encontro teve a marca da contemporaneidade: discursos fragmentados, diversidade, contraposição de idéias e discursos, não-presença, discussões acerca do público e privado e as fronteiras de cada um desses espaços, incômodo. Incômodo, talvez essa seja a palavra chave para enterder o que significou o primeiro Debates.

Talvez bem diferente do que muitos esperavam, o que se deu não foi um seminário, ou uma palestra, ou mesmo um debate linear sem tensões, ou sem sentir na pele o que de fato é a contemporaneidade. A proposta foi fazer de todos os presentes ali, debatedores. Não foram dadas respostas e sim mais perguntas aos participantes e era esse o cerne do encontro. Quem teve sensibilidade, viu o invisível.

Tudo começou com a simples pergunta: o que é arte? A partir daí, ainda tímidas, surgiram as respostas. Arte é não limite, liberdade de expressão, é romper barreiras; arte é um jeito diferente de pensar, de expressar, apreender a realidade de forma diferente; arte é saber viver bem em conjunto, é resposta; arte é incômodo, arte é pergunta... não sei; arte é presença, é estar aqui e agora, arte é vida. Dessa rede de respostas podemos entender que na contemporaneidade, mais do que significado, a arte parece ter um propósito e não pode ser realizada em sua plenitude sem que alguns estados e esferas de seu fazer sejam compreendidos e inscritos no corpo: presença, incômodo, transformação, subversão, capacidade de gerar mais perguntas que respostas e ter, no público, seu co-autor, pois ele completa a obra ao lhe dar significações próprias em si mesmo.

Seguiu-se o encontro com o inevitável caminhar pela contemporaneidade, já que nela estamos todos inseridos, mesmo que alguns (bilhões) não estejam tão presentes. As discussões então se acirraram e arte se mesclou à questão do limite entre público e privado, à tirania do capital e suas consequências sociais, ao trabalho, a arte marginal e se essa é arte ou não-arte (segundo padrões estéticos específicos), ao belo e ao feio, ao rude e ao poético, à importante questão do estar presente e consciente na vida - não apenas para o artista, mas para o ser; liguagem, forma, conteúdo também deram suas pinceladas no debate.

Nesse contexto foi muito fácil se confundir e sair dali com a impressão de que o encontro perdeu o fio da meada, se deslocou e saiu de seu eixo condutor. Mas, os mais atentos e dotados de um mínimo de senbsibilidade e clareza perceberam que não, muito pelo contrário. O Debates acabou por ser exatamente um reflexo da contemporaneidade e da arte contemporânea. Afinal, ela (a arte) é viva, se estabelece na relação, é múltipla e multi-facetada, é diversa e cheia de contradições, ela se faz no conflito e nas significações que provoca, não no significado palpável da obra, mas no que está por trás dela e no que causa, se faz também no incômodo. E o incômodo era quase palpável no ar.

É muito bonito ver na lousa e nas páginas dos livros as características do modernismo e da época moderna, que Baudellaire poeticamente descreveu em seu ensaio "Sobre a Modernidade"; ou ler e mesmo falar sobre a contemporaneidade a partir da luz de Adorno, Benjamin, Foucalut, Homi Babba, Derrida, Deleuze e tantos outros. Mas, muito diferente, perscrutador e provocador é, verdadeiramente, ser consciente e sentir essas características na própria carne, ensanguentada e fragilizada, desnudada e incomodada.

Esse incômodo ficou claro quando uma simples questão suscitou uma série de provocações: "pichação é arte?". Não, é vandalismo; pichação é uma afronta, um abuso; é falta de respeito com o patromônio público e privado; pichação é uma invasão ao meu muro, à minha casa, ao meu espaço privado, ao meu interior; ela não é bonita, é feia, suja, incomoda; pichação é o grito da periferia, dos excluídos, dos marginais dizendo que é um absurdo a forma como a sociedade em que vivemos se organiza e se impõe, da forma como inclui, excluindo. O site pichacao.com traz uma interessante definição: "pichação é uma ação de transgressão, chamar a atenção para si por meio da subversão do suporte (...) A pichação não consitui gesto estético obrigatório - em relação a forma e conteúdo - embora isso ocorrer" e nesse sentido é importante deslocarmos nossos olhares daquele permeado por mero juizo de valor e passarmos a enxergar o que há por trás do gesto.

Dois blocos bem distintos e opostos de pensamento se apresentaram no espaço. De um lado, representantes do meio universitários privado, formados e modelados pelo pensamento estético do belo e da arte autorizada e institucionalizada, colocavam a pichação e a invasão do espaço privado como um crime, um abuso, mera expressão estética de vandalismo; de outro, jovens artistas marginais leitores de Dostoiévski, com forte discurso social carregado e personalizado pelo grito dos excluídos colocavam a pichação como forma artística da contemporaneidade. Duas visões que se colocavam de forma bastante rígidas em seus pressupostos.

É interessante notar que duas visões, dois pontos de vista nortearam essa discussão e dentro dela alguns apontamentos devem ser feitos. Se no início do debate foi colocado que arte é o não limite, é o romper barreiras, é vida, incômodo, expressão, transgressão, pergunta e resposta, por que então impor tantas barreiras, limites e opressão sobre uma expressão estética social como é a pichação? Será que a arte não pode invadir o espaço privado? Qual o limite entre público e privado, hoje? Se arte não pode invadir o espaço privado, como ela chega a assaltar o Ser em seu interior? A sociedade em que vivemos, com seus "ismos", estéticas efêmeras sem conteúdo, mensagens consumistas, imposições sociais, educacionais, econômicas e políticas não está, exatamente, solapando, fragmentando e destruindo o espaço privado com falsas impressões e certezas? Somos donos de nós mesmos? Essas são, algumas das questões que a arte contemporânea suscita e que foi possível, para o olhar atento, observar no encontro. São as questões que estão por trás do "couro de cobra" da Pinacoteca de São Bernardo do Campo e da pichação dos muros de nossas casas ou dos muros de João Ramalho (por mais que os artistas por trás deles não tenham essa consciência, ou mesmo nós, como público).

Se procurarmos ir além do simples e superficial juizo de valor, podemos, talvez, perceber essas questões e procurar as respostas em nós mesmos. Seria necessário essa mesma postura para ir além de nossos próprios discursos e pontos de vista enrigecidos (sejam eles institucionalizados ou periféricos) e alcançarmos um patamar acima e além do mero embate de visões, para viver uma diversidade para a transformação. Usando uma expressão de Fritjof Capra (autor de "O Tao da Física"), alcançar e ultrapassar o ponto de mutação. Para isso ocorrer faz-se imprescindível criar relacionamento pleno, redes de conlito e criação, estado de presença real e verdadeiro, despirmo-nos de nossas vestes e nossa carne para Estar em estado de fragilidade e disponibilidade, ver o outro não como expressão de uma visão, estabelecida ou marginal, mas como um ser inscrito no mundo - mas para cada um se colocar como tal é preciso a cada um Se transmutar.

Essas não são, pois, as inquietações que sugerem a arte contemporânea? Afinal, ela tem definição? É realmente necessário nomear e definir algo para compreendê-lo e inserí-lo dentro de nós, ou a experiência sensorial é muito mais abrangente? Incomoda o não definido racionalmente, o que foge ao nosso controle, aos nossos padrões, à nossa estética, à nossa vidinha privada. A arte incomoda sim, pois é incompleta e nós, como público, somos exortados a completá-la. Somos capazes?

Depois de tudo, se alguém saiu do primeiro Debates, de certa forma, incomodado, então foi trilhado um caminho interessante e que está sendo construído de maneira coletiva, criando relações e tensões para buscar o ponto de mutação. Mutação, transgressão, subversão, transmutação... arte.

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