Quinta-feira à noite, foi realizado na sala de exposição de grandes obras da Pinacoteca de São Bernardo do Campo o primeiro de uma série de encontros sobre arte contemporânea e sociedade, o Debates: uma das atividades do projeto Paisagens Urbanas... um Labirinto, realização do Coletivo Ambulante.
O encontro teve a marca da contemporaneidade: discursos fragmentados, diversidade, contraposição de idéias e discursos, não-presença, discussões acerca do público e privado e as fronteiras de cada um desses espaços, incômodo. Incômodo, talvez essa seja a palavra chave para enterder o que significou o primeiro Debates.
Talvez bem diferente do que muitos esperavam, o que se deu não foi um seminário, ou uma palestra, ou mesmo um debate linear sem tensões, ou sem sentir na pele o que de fato é a contemporaneidade. A proposta foi fazer de todos os presentes ali, debatedores. Não foram dadas respostas e sim mais perguntas aos participantes e era esse o cerne do encontro. Quem teve sensibilidade, viu o invisível.
Tudo começou com a simples pergunta: o que é arte? A partir daí, ainda tímidas, surgiram as respostas. Arte é não limite, liberdade de expressão, é romper barreiras; arte é um jeito diferente de pensar, de expressar, apreender a realidade de forma diferente; arte é saber viver bem em conjunto, é resposta; arte é incômodo, arte é pergunta... não sei; arte é presença, é estar aqui e agora, arte é vida. Dessa rede de respostas podemos entender que na contemporaneidade, mais do que significado, a arte parece ter um propósito e não pode ser realizada em sua plenitude sem que alguns estados e esferas de seu fazer sejam compreendidos e inscritos no corpo: presença, incômodo, transformação, subversão, capacidade de gerar mais perguntas que respostas e ter, no público, seu co-autor, pois ele completa a obra ao lhe dar significações próprias em si mesmo.
Seguiu-se o encontro com o inevitável caminhar pela contemporaneidade, já que nela estamos todos inseridos, mesmo que alguns (bilhões) não estejam tão presentes. As discussões então se acirraram e arte se mesclou à questão do limite entre público e privado, à tirania do capital e suas consequências sociais, ao trabalho, a arte marginal e se essa é arte ou não-arte (segundo padrões estéticos específicos), ao belo e ao feio, ao rude e ao poético, à importante questão do estar presente e consciente na vida - não apenas para o artista, mas para o ser; liguagem, forma, conteúdo também deram suas pinceladas no debate.
Nesse contexto foi muito fácil se confundir e sair dali com a impressão de que o encontro perdeu o fio da meada, se deslocou e saiu de seu eixo condutor. Mas, os mais atentos e dotados de um mínimo de senbsibilidade e clareza perceberam que não, muito pelo contrário. O Debates acabou por ser exatamente um reflexo da contemporaneidade e da arte contemporânea. Afinal, ela (a arte) é viva, se estabelece na relação, é múltipla e multi-facetada, é diversa e cheia de contradições, ela se faz no conflito e nas significações que provoca, não no significado palpável da obra, mas no que está por trás dela e no que causa, se faz também no incômodo. E o incômodo era quase palpável no ar.
É muito bonito ver na lousa e nas páginas dos livros as características do modernismo e da época moderna, que Baudellaire poeticamente descreveu em seu ensaio "Sobre a Modernidade"; ou ler e mesmo falar sobre a contemporaneidade a partir da luz de Adorno, Benjamin, Foucalut, Homi Babba, Derrida, Deleuze e tantos outros. Mas, muito diferente, perscrutador e provocador é, verdadeiramente, ser consciente e sentir essas características na própria carne, ensanguentada e fragilizada, desnudada e incomodada.
Esse incômodo ficou claro quando uma simples questão suscitou uma série de provocações: "pichação é arte?". Não, é vandalismo; pichação é uma afronta, um abuso; é falta de respeito com o patromônio público e privado; pichação é uma invasão ao meu muro, à minha casa, ao meu espaço privado, ao meu interior; ela não é bonita, é feia, suja, incomoda; pichação é o grito da periferia, dos excluídos, dos marginais dizendo que é um absurdo a forma como a sociedade em que vivemos se organiza e se impõe, da forma como inclui, excluindo. O site pichacao.com traz uma interessante definição: "pichação é uma ação de transgressão, chamar a atenção para si por meio da subversão do suporte (...) A pichação não consitui gesto estético obrigatório - em relação a forma e conteúdo - embora isso ocorrer" e nesse sentido é importante deslocarmos nossos olhares daquele permeado por mero juizo de valor e passarmos a enxergar o que há por trás do gesto.
Dois blocos bem distintos e opostos de pensamento se apresentaram no espaço. De um lado, representantes do meio universitários privado, formados e modelados pelo pensamento estético do belo e da arte autorizada e institucionalizada, colocavam a pichação e a invasão do espaço privado como um crime, um abuso, mera expressão estética de vandalismo; de outro, jovens artistas marginais leitores de Dostoiévski, com forte discurso social carregado e personalizado pelo grito dos excluídos colocavam a pichação como forma artística da contemporaneidade. Duas visões que se colocavam de forma bastante rígidas em seus pressupostos.
Se procurarmos ir além do simples e superficial juizo de valor, podemos, talvez, perceber essas questões e procurar as respostas em nós mesmos. Seria necessário essa mesma postura para ir além de nossos próprios discursos e pontos de vista enrigecidos (sejam eles institucionalizados ou periféricos) e alcançarmos um patamar acima e além do mero embate de visões, para viver uma diversidade para a transformação. Usando uma expressão de Fritjof Capra (autor de "O Tao da Física"), alcançar e ultrapassar o ponto de mutação. Para isso ocorrer faz-se imprescindível criar relacionamento pleno, redes de conlito e criação, estado de presença real e verdadeiro, despirmo-nos de nossas vestes e nossa carne para Estar em estado de fragilidade e disponibilidade, ver o outro não como expressão de uma visão, estabelecida ou marginal, mas como um ser inscrito no mundo - mas para cada um se colocar como tal é preciso a cada um Se transmutar.
Depois de tudo, se alguém saiu do primeiro Debates, de certa forma, incomodado, então foi trilhado um caminho interessante e que está sendo construído de maneira coletiva, criando relações e tensões para buscar o ponto de mutação. Mutação, transgressão, subversão, transmutação... arte.
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